A partir do início da década de 50 tanto a grande quanto a pequena imprensa intensificariam a veiculação da imagem de um Sertão Carioca marcado pela destruição de sua lavoura e pela ação predatória de "grileiros" contra "lavradores esquecidos pelo poder público". O resultado de tudo isso, nas palavras d'O Globo era a existência de "grande abandono e desânimo" entre os produtores da região. Mas se o "abandono" denunciado nas décadas anteriores dizia respeito à falta de medidas por parte do governo municipal e federal para a incorporação da zona rural à cidade, nesse momento (década de 50), a palavra "abandono" era uma alusão à falta de providência dos poderes públicos contra os empreendedores imobiliários, cujas ações estavam pondo em risco a sua agricultura.
Em 11 de julho de 1951, o jornal O Popular, lamentava a situação do Sertão Carioca, que mesmo sendo a região responsável por 40 % do abastecimento da cidade, via-se "condenada ao desaparecimento, dentro de pouco tempo, uma vez que as terras próprias para o plantio estão sendo adquiridas por cias. imobiliárias que as venderão depois de loteadas". Dois dias depois, o jornal voltava ao tema do "drama vivido por centenas de famílias que se dedicam a agricultura, no chamado 'cinturão verde' da capital da República". A mesma área que há vinte anos "vinha sendo cultivada tranqüilamente", era palco naquele momento de uma intensa valorização de suas terras, ocasionando sérios prejuízos ao abastecimento do Distrito Federal e na ameaça de despejo de centenas de lavradores que "não sabem fazer outra coisa". O mesmo jornal dizia ter tido a "oportunidade de assistir à destruição levada a efeito por um trator, que num dia de trabalho devora, tal como um monstro, centenas de pés de laranjas, carregados de frutos".
Essa representação sobre a região como uma área agrícola em vias de desaparecer atravessaria as décadas de 50 e 60: despejos, violência contra lavradores, queima de casas e plantações, a cumplicidade das autoridades policiais, descaso dos poderes públicos, grilagens, etc, continuavam a dar o tom da imagem do Sertão Carioca. Um caso ocorrido em Campo Grande envolvendo o "rendoso comércio de loteamentos de terrenos" foi emblemático. Estamos no ano de 1961 e segundo palavras do jornal Novos Rumos: "Confiam os tubarões de terras no sucesso de seus negros propósitos, baseados no fato de, há alguns anos, terem conseguido desalojar humildes camponeses fixados em terras adjacentes e que, tal como os que ora labutam às margens do Cabuçu, tinham como única fonte de receita o amaino do solo."
Para os jornais, eram as companhias imobiliárias, nas mãos de "grileiros", as principais responsáveis por esse cenário de "drama" e "destruição". "Gangsters!" – assim eram denominados pelo O Radical em agosto de 1950. "Juntos dos assaltantes brasileiros de terras, asseverava o jornal, Al Capone é pinto!" (O Radical, 24/08/1950, p. 1). Em julho de 1951, o jornal publicava uma série de reportagens sobre grilagem de terras na localidade de Pedra de Guaratiba com o sugestivo título "Vai correr sangue!". Ali, uma zona de produção estava sendo destruída por um "frio assaltante de terras" chamado Pedro Moacir, "interessado em transformar Pedra de Guaratiba em recanto de turismo, onde os 'bacanas" e parasitas da sociedade possam descansar os seus ócios". Agindo desse forma, este "aventureiro" – nas palavras d'O Radical - agia contra o abastecimento da cidade e contra a coletividade de trabalhadores da região. Outro detalhe importante, segundo o jornal, era o fato da polícia agir "mancomunada com os grileiros", prestando-lhe "assistência" e garantindo o "esbulho e perseguição" dos lavradores (O Radical, 20/02/1951, p. 2). Quando chegamos à metade da década o quadro se revela praticamente o mesmo segundo as linhas do Imprensa Popular. Como "atestaria" a situação de cerca de 2 mil lavradores com suas respectivas famílias na Fazenda Piaí (Sepetiba), "vivendo todos eles sobressaltados com o jôgo escabroso dos Lopes, que resolveram introduzir, ali, o regime de terror e da fôrça, levando o pânico até às portas de humildes lavradores." Ainda segundo o jornal, os funcionários encarregados da administração da propriedade tinham como "ordens recebidas" do pretenso proprietário "depredar, queimar e dizimar as palhoças e as plantações". E mais: "até a ordem de usar o revólver foi dada" (Imprensa Popular, 21/11/1956, p. 6).
Outra figura negativamente personificada era a do corretor de imóveis. Como o prova o caso de Mario de Mendonça, que acusado de vender terrenos da municipalidade em Sepetiba, teve de fugir depois de "descoberto em sua trama diabólica". Pode-se dizer que sua investida não foi de todo um fracasso, já que conseguiu fugir com o dinheiro dos "incautos" por ele fisgados (Gazeta de Notícias, 20/12/1955, p. 8). Para O Popular, esses corretores não passavam de "piratas e espertalhões" que tinham inventado uma nova modalidade de "lesar o povo".
Essa representação sobre a região como um espaço de conflito entre "posseiros" e "grileiros" - este tendo como importantes aliados os corretores imobiliários e a "omissão" dos poderes públicos - atravessaria toda a década de 50 e chegaria praticamente intacta aos anos 60: despejos, violência contra lavradores, cumplicidade das autoridades policiais, descaso dos poderes públicos, grilagens etc., continuavam a dar o tom da imagem do Sertão Carioca. Um caso ocorrido em Campo Grande envolvendo o "rendoso comércio de loteamentos de terrenos" foi emblemático.
Estamos no ano de 1961 e segundo palavras do Novos Rumos:
"Confiam os tubarões de terras no sucesso de seus negros propósitos, baseados no fato de, há alguns anos, terem conseguido desalojar humildes camponeses fixados em terras adjacentes e que, tal como os que ora labutam às margens do Cabuçu, tinham como única fonte de receita o amaino do solo (Novos Rumos, 11- 17/08/1961, p. 6)."
Este mesmo caso mais uma vez confirmaria a aliança entre "grileiros" e "poder público", o que de certa forma descaracterizava a idéia de que o segundo se omitia sobre as questões de terra do Sertão Carioca. Talvez em função da repercussão provocada pelas denúncias da imprensa, os "grileiros" interromperam por alguns meses as suas ações. Mas no fim do ano "êstes cavalheiros" que se diziam "donos daquelas terras" tinham retomado as "perseguições aos lavradores". Para a consecução de tal fim, tinham "contratado" os sargentos Valdir e Cajatier "para expulsarem os agricultores". Escreve ainda o (Luta Democrática 01/12/1961, p. 3)que "a frente de um grupo bem armado, percorrem êles diáriamente a região, queimando plantações e casas; destruindo cêrcas de arame farpado e matando o gado". Nem mesmo as iniciativas por parte da Prefeitura, por intermédio da sua Secretaria de Agricultura, promovendo Feiras em comemoração ao Dia da Lavoura, compra de tratores, distribuição de mudas e promessas de "fixação do homem do campo" parecia reabilitar a imagem que se tinha da municipalidade em face do processo de extinção da lavoura carioca. Na verdade, o que se observa é uma tendência da Prefeitura em concentrar sua atuação na questão agrícola ao tratar apenas da produção da Fazenda Modelo (Guaratiba) e da tentativa da regulamentação dos preços e produtos comercializados no Mercado Municipal e nas feiras-livres da cidade.
Outro aspecto sintomático dessa postura é ausência de qualquer iniciativa de desapropriar terras em litígio – atribuição que pertencia ao Prefeito da cidade, e que nunca seria utilizada. A discussão desse tipo de questão é cada vez mais monopolizada pelo legislativo. Mas a situação se torna mais complicada no início da década de 60, quando um novo zoneamento municipal determinava a ampliação das áreas destinadas à implantação de indústrias e lotes residenciais e, conseqüentemente, a restrição das áreas reservadas à agricultura.
Longe de serem vistos como um fenômeno distante e inexplicável, só apreendido pela matemática dos censos – na comodidade da análise feita a posteriori, distante do calor dos eventos... - os loteamentos eram considerados como sendo de autoria de "grileiros", "ladrões de terras" e "aventureiros", cujas práticas acarretavam inúmeros "malefícios ao abastecimento da cidade" e à "vida de humildes lavradores" e suas famílias. Ou seja, a expansão dos loteamentos sobre o Sertão Carioca se deu paralelamente à formação de uma importante arena de disputas em torno de valores e significados referentes a noções de direito e justiça. A existência de tal arena acabou sendo desconsiderada quando alguns estudiosos preferiram designar esse processo apenas como "expansão do vetor urbano pela área rural". Mas na época em que esse processo se deu, ele era qualificado por alguns órgãos de imprensa como "repelentes assaltos de terras" praticados por "malfeitores encasacados"(O Radical, 13/05/ 1952, p. 6), ou, como contra-argumentavam as loteadoras, como a "chance sem igual de uma vida alegre" com "aplicação de capital seguro", em terras "devidamente registradas e legalizadas". E além de produzir novas ruas e casas, tal expansão concorreu para o surgimento de novas idéias, representações e certezas: dentre elas, foi-se consolidando a de que os infortúnios vividos pelos habitantes da região atendiam a interesses de um determinado grupo: enquanto a diminuição da produção agrícola acontecia, levando ao declínio das condições de vida dos lavradores e à falta de gêneros para o abastecimento da cidade, havia homens que faziam fortunas com ela. Muito mais do que um fenômeno econômico racional e objetivo, que aparentemente teria triunfado com ares de inexorabilidade, tais loteamentos eram associados a categorias sociais bem delimitadas, personificadas por indivíduos de carne e osso, cujos interesses e intenções eram quase que diariamente expressos em denúncias de violências e ameaças. De certa forma, a luta dos posseiros do Sertão Carioca acabaria por evidenciar, talvez um tanto involuntariamente, que a expansão urbana sobre a região não tinha a racionalidade como um dos seus fundamentos. Muito pelo contrário, a expansão urbana nem mesmo se baseou em elementos puramente econômicos, pois sua vitória dificilmente poderia ser imaginada sem o extensivo recurso da força e de várias formas de violência, tendo inclusive a anuência de forças policiais.