Nas três primeiras décadas do século XX, Campo Grande, Guaratiba, Jacarepaguá e Santa Cruz eram as principais freguesias que por aquela época faziam parte da zona rural da então capital da República segundo o Censo de 1920. Essa região é o que hoje conhecemos pelo nome de Zona Oeste. As freguesias de Engenho Novo, Inhaúma, Irajá, Méier também pertenciam, embora nelas se verificasse um avançado estágio de urbanização. Segundo o Gazeta Suburbana, também faziam parte da zona rural as “localidades” de Cordovil e Vigário Geral. Os dados do Censo mostram que a zona rural possuía 2.088 estabelecimentos agrícolas que ocupavam uma área total de 51.419 hectares (514.190.000 m²). Apenas um pouco mais de 1% dessa área era abrangida pelos estabelecimentos localizados nos distritos do Méier e Inhaúma, mostrando serem áreas de feição quase totalmente urbana. Muito contribuiu para isso o retalhamento das fazendas do Portela, da Bica, da Boa Esperança, do Valqueire, do Campinho, da Nazareth e dos Afonsos. Em todas elas produziram-se lotes urbanos, se bem que bastante influenciados pelas características das antigas chácaras. As medidas (20-40 de testada e 60-100 de fundura) correspondia a um casarão de centro de terreno com um enorme quintal atrás, “onde facilmente se poderia ter uma horta e criação de galinhas ou porcos”.
Foram desses loteamentos que surgiram os bairros “suburbanos” de Madureira, Bento Ribeiro, Osvaldo Cruz, Visconde de Carvalho, Quintino, Honório Gurgel, Vila Valqueire, Deodoro, Marechal Hermes, Vila Militar, Coronel Magalhães Bastos, Realengo e outros. Mas esse processo não foi repentino, dando-se ao longo de pelo menos uns 60 anos.
Em situação oposta, os estabelecimentos dos distritos de Campo Grande, Guaratiba e Santa Cruz abarcavam cerca de 90% da área total. O historiador da época Delgado de Carvalho notava que essas freguesias possuíam uma produção agrícola bastante diversificada. Os estabelecimentos ali localizados produziam ao todo 30 mil toneladas de açúcar, 10 mil de mandioca e mais 3 mil de milho, além de feijão, arroz e café. Possuíam ainda significativo rebanho com 23 mil bovinos, 22 mil suínos, 16 mil muares e 7 mil cavalos. Também digna de nota, já nessa época, era a fruticultura. Delgado de Carvalho notava que em Guaratiba, “o mais rico de todos os districtos agrícolas”, mais precisamente na “encosta Occidental do massiço da Pedra Branca”, havia grandes pomares, plantações extensas de bananeiras, de laranjeiras e de “outras frutas”. Ainda segundo o censo de 1920, os distritos de Campo Grande, Guaratiba e Santa Cruz concentravam o maior número de cabeças de gado, tinham a maior produção de arroz, feijão, batata inglesa, cana; eram os únicos que produziam algodão e mamona, e detinham a segunda maior produção de café, milho e mandioca. Nessas freguesias rurais, o mercado de compra, venda e aluguel de terras se mantém ativo. A tendência continua ser a de manter as terras voltadas para a produção agrícola. Contudo, percebe-se também uma crescente tendência em se destacar a possibilidade desses terrenos se constituírem em moradas de veraneio. Vejamos, por ordem, os anúncios de terrenos em Santíssimo, Campo Grande, Barra da Tijuca, Jacarepaguá e Santa Cruz e Bangu em 1927. Todos são anúncios de venda, exceto o segundo, que é de aluguel. Notem que os atrativos dos terrenos, além da sua dimensão, consistiam em benfeitorias e na existência de algumas plantações e “creações” de animais:
1º - “belíssimo sítio, tendo morro e vargem, boa agua de cachoeira, tem bananas de diversas qualidades, pomar de laranjas, boas arvores, abacate, 300 fruteiras de conde, algum mamão, tem café, muito aipim, batatas, uma grande horta de couves, feijão de vagens, um grande aboboral, terreno em matto, 800 cabeças de criação, tendo algumas ferramentas da roça, logar muito sadio(...).”
2º - “Aluga-se, com contrato de 5 annos e bom fiador, 133x1.700 de fundos, água de cachoeira e encanada, casa de telha regular e mais três colonos, 5.800 pés de laranjas pêra novos e 2.500 pés de mamão, melão, grande plantação de aipim, batata e quiabos, bananal, dois bois e burro, carro charette, arado e criações(...) aluguel 250$000 mensaes”.
3º - “Vende-se ou aluga-se por contrato o lindo sitio da Estrada da Barra da Tijuca 24, a 4 minutos do ponto dos bondes da Freguezia, em Jacarepaguá, com grandes pomar (sic) e todas as qualidades de frutas nacionais e estrangeiras, mangueiras para porcos, cocheiras para animaes, esplendido para criação de aves e o terreno mede 140 metros de Frente por 150 de fundos, agua encanada, boa casa de campo para morada, luz, etc.”
4º - “Vendem-se dous sítios, 1 por 15 contos, tendo 70 mil m², com rico bananal, cafezal, frutas e matta; outro com cento e tantos mil m² com nascentes, bananal, cafezal, frutas e mattas, por 25 contos na Estrada do Catonho...”
5º - “bom sitio (...) tem uma casa de telha, bois, carroça, 3 cabras, gallinhas, porcos, muita legra, mil e tanto enxertos de laranja, 1 cachoeira, lugar muito saudável.”
6º - “situação com casa e estábulo, tendo 55 cabeças de gado bovino, inclusive, carroça, cavallo, mulas, porcos, ganços, patos e gallinhas, grande bananal e algumas laranjas. 35 contos.”
Nessa época, podemos ver que se esboça também um mercado voltado para a construção de loteamentos. Vejamos esses anúncios, também de 1927, de um terreno em Realengo e Campo Grande respectivamente:
“terreno 140 x 275 – Vende-se no Realengo, junto à Estrada Rio-SP, área plana, própria para loteamento.”
“152 reis o m², vendo boa fazenda, dando renda. Ótima para loteamento por estar junto a estação do subúrbio a 1 hora do Rio.”
Mas a expansão do processo de mistura de usos rurais e urbanos não parecia ser um problema, ao menos nesse momento, aos olhos de quem vivia naquela época. O problema era outro: o que então causava certa apreensão era o não aproveitamento de consideráveis porções de terra da área da zona rural. Ao mesmo tempo que alguns exaltavam a potencialidade agrícola dessa zona rural, outros demonstravam preocupação com as terras não aproveitadas. A partir daí, a imagem da zona rural como grande centro de abastecimento sofreria retoques nada otimistas. Vizinhas ás noções de fartura e variedade agrícola continuava persistindo as noções de abandono e improdutividade, cujas raízes remontavam ao século XIX. Mas é preciso que se observe que nesse momento, nas primeiras décadas do século XX, tais noções seriam temperadas por outros matizes. Explicando melhor: a decadência da região não era fruto apenas do desaparecimento das “vicejantes lavouras” dos grandes fazendeiros, mas fundamentalmente do estado de abandono a que foi relegada pelos poderes públicos.
Vejamos o que o jornal Gazeta Suburbana dizia em seu editorial dedicado às “coisas da política” em 1910. Nele o jornal apresentava aos seus leitores o que seria uma importante bandeira a ser defendida. Após afirmar que a capital federal só era conhecida “da Estação Central[do Brasil] a Botafogo”, ele prometia que
“daqui dessas columnas bradaremos sempre e sempre até que a nossa voz, unida a de outros batalhadores mais fortes que nós seja ouvida por alguém que não estando prezo aos grilhões da política lembre-se que o Districto Federal comprehende não só o trecho da Central a Botafogo, mas extende-se ate Santa Cruz e Guaratiba”.
A outra face desse abandono seriam as doenças que grassariam na região. Afrânio Peixoto, escritor e professor de higiene na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro era uns dos especialistas “alarmados” com tal situação. Numa conferência realizada em 19 de maio de 1918, o sanitarista tentava convencer que não era só o interior do país que se encontrava entregue às “terríveis endemias rurais”:
“Se raros escapam à doença, muitos têm duas ou mais infestações [...] Vêem – se, muitas vezes, confrangido e alarmado, nas nossas escolas públicas crianças a bater os dentes com o calafrio das sezões [...] E isto, não nos ‘confins do Brasil’, aqui no DF, em Guaratiba, Jacarepaguá, na Tijuca [...] Porque, não nos iludamos, o ‘nosso sertão’ começa para os lados da Avenida [Central]...”
Para Afrânio Peixoto, o abandono e a infestação de doenças que assolavam a zona rural carioca, ou parte dela, eram suficientes para que se pudesse considera-la uma região igual aos “miseráveis rincões” espalhados pelo interior do país – um sertão entre tantos. Mas a que significado o professor Afrânio e outros (professores e não professores) se referiam quando pensavam e diziam a palavra sertão? Em Um Sertão chamado Brasil, Nízia Lima Trindade retraça a trajetória dessa palavra desde o período colonial, quando ela designava “o território vazio, o domínio do desconhecido, o espaço ainda não preenchido pela colonização”, até chegar ao período da República Velha. Segundo a autora, nos primeiros anos da República, o Sertão era qualificado a partir de três ideias básicas: doença, abandono e autêntica consciência nacional. Ao mesmo tempo que era o espaço dominado pela pobreza e pela barbárie, era também o portador de valores morais, entendidos como os mais típicos da nacionalidade brasileira. Ainda segundo a autora, neste momento é possível ver um expressivo movimento de valorização do sertão, seja como espaço a ser incorporado pelo esforço civilizatório, seja como referência da autenticidade, movimento este que seria reforçado quando tomava corpo no final da década de 1910 a Campanha pela Reforma da Saúde Pública e pelo Saneamento dos Sertões. Contudo, no caso particular da zona rural do Distrito Federal, a ênfase do pronunciamento do sanitarista Afrânio Peixoto parecia recair quase toda ela nos polos doença e abandono.
Essa visão era reforçada por José Maria Bello, também sanitarista. Mas Bello ia além. Para ele, as condições de saúde na zona rural eram tão alarmantes, que se fazia necessário reformular a tradicional divisão do país entre “litoral” e “interior”. Além dessas duas regiões, haveria a “periferia do Distrito Federal”. Cada uma dessas regiões era definida não por critérios geopolíticos, mas pela presença das três grandes endemias rurais. Dizia Bello no mesmo ano de 1918:
“Às portas da capital a ancilostomose dizima a população da baixada, como mais além, por todo o litoral e margens de rios, o impaludismo, e pelos sertões, a tripanossomíase americana colhem as suas vítimas”.
Os “diagnósticos” dos sanitaristas também encontravam respaldo em parte da imprensa. Segundo o Gazeta Suburbana, Tijuca, Campo Grande, Guaratiba, Santa Cruz, Sepetiba, Irajá e Inhaúma, eram “localidades” que “maior progresso” não tinham devido ás “várias moléstias que definham ou matam as suas populações”. Portanto, tinha-se junto a uma visão da zona rural como área de prosperidade e fartura, uma outra extremamente pessimista que a tomava como um sertão, já que entregue ao atraso e a toda sorte de “pestilências”. Se essa visão era exagerada ou não, não podemos saber ao certo. Mas é sem dúvida muito significativo o fato dos anunciantes de terrenos fazerem questão de afirmar que suas terras ofereciam boas condições de saúde e higiene através de termos como “local saudável”, “logar salubérrimo”, “boa casa para morada”, “logar muito sadio”, etc.
O pesquisador Gilberto Hochman lembra que com suas declarações, A.Peixoto e J.M. Bello exerceram, já em sua época, grande impacto sobre “a campanha pelo saneamento rural”. Com eles ficava claro que
“esse pedaço de Brasil doente não era nem pequeno nem longínquo, para continuar esquecido pelas autoridades públicas e idiotizados pelas endemias. Se as conseqüências do abandono e da doença tinham chegado aos calcanhares da elite brasileira, ao final da Avenida Central, teriam ainda de alcançar suas consciências.”
As consciências já pareciam estar devidamente alcançadas. As preocupações por parte de alguns órgãos governamentais não deixam dúvidas quanto a isso. Ao menos era o que indicava a aprovação pelo legislativo da cidade do Projeto n. 7, que no seu artigo 1º fazia saber que:
“Fica o Prefeito do Districto Federal autorizado a mandar sanear a zona não exgotada deste Districto (parte da zona urbana, a suburbana e a rural), devendo para isto:
a) desapropriar terrenos não drenados convencionalmente, desflorestados, polluidos, pantanosos e incultos que tenham vegetação nociva à produção e que permittam o desenvolvimento de insectos e de parasitas vectores, cujos proprietários não realizem, dentro do prazo que lhes for marcado, pelo competente departamento municipal, os serviços de drenagem, reflorestação.”
A aprovação por “maioria absoluta” desse projeto parecia indicar a intenção de fazer com que ele fosse implementado o quanto antes. Mas ao que parece a região ainda teria que esperar um pouco mais para ver a transformação dessas intenções e preocupações em algo mais concreto. Ainda encontraríamos nos anos seguintes testemunhos dando conta da persistência de condições de insalubridade e ocorrência de várias doenças.
Anos depois, seria o Ministério da Agricultura a demonstrar estar disposto a agir para “sanear” esta situação. Para ele o “abandono” da zona rural repercutiria principalmente na agricultura e nas condições de salubridade. O próprio Censo de 1920 destacava que mesmo sendo uma das principais fontes de abastecimento da cidade, a região tinha grandes áreas que permaneciam incultas. Em Campo Grande, por exemplo, os estabelecimentos agrícolas ocupavam apenas 31,4% da área cultivável de todo o distrito. Quase uma década depois, em 1929 o então ministro da Agricultura Lyra Castro revelava sua intenção de criar em terras da Fazenda Nacional um centro agrícola para “aproveitar magníficas terras, até aqui improductivas”. Tal proposta de Castro também trazia implícita a ideia de uma zona rural triste e débil, já que pouco lembrada pelo poder público. Sendo Castro uma autoridade política que representava a “voz” do Ministério da Agricultura, seu discurso fazia com que o “estado de abandono” fosse reconhecida pelo próprio poder público. Por isso a criação do centro agrícola ajudaria a reparar este histórico descaso, uma vez que a intervenção governamental fazia a região “recuperar” a sua produtividade e felicidade:
“Cada um procurará adquirir o seu lote aos proprietários das terras próprias para a lavoura, hoje abandonada, e dentro de alguns annos o aspecto desolador que caracteriza essas terras na actualidade se transformará na risonha perspectiva de innumeras pequenas granjas prosperas, habitadas por gente feliz.”
No mesmo ano, num relatório apresentado ao Ministério da Agricultura relativo ao “melhoramento das condições da agricultura no Distrito Federal” entre 1927 e 28, o autor se diz “impressionado com o estado de abandono de grandes áreas cultiváveis no Distrito Federal que, uma vez exploradas, teriam grande concurso no abastecimento do Rio”. As terras da zona rural, continua ele, “oferecem ótimas condições para a agricultura mas estão transformadas em pântanos e precisam ser saneadas”. Era necessário, escrevia ele, um programa de incentivo à produção com vistas a efetivar a zona rural como a principal solução do “consumo e barateamento da vida na cidade”. É possível que esta autoridade que representava o Ministério da Agricultura não encarasse o problema das terras incultas exclusivamente sob o ponto de vista do aproveitamento agrícola. O estado de abandono das terras era prejudicial não só para a agricultura, como também para a saúde da população carioca. O saneamento da região tinha nesse sentido, dupla importância: era um meio capaz de devolver estas terras à prática da agricultura e era o único capaz de expulsar da região os vários focos de doenças nela instalados.
Tais preocupações dariam forma a outros projetos e ações governamentais, demonstrando que na prática a zona rural não era de todo uma “região esquecida” e “vazia de significado” para os poderes públicos, embora essa fosse a imagem consolidada sobre a região. As consequências desencadeadas pela execução de alguns desses projetos, especialmente para a agricultura e saneamento da zona rural, é o que as próximas décadas terão o mérito de nos mostrar.
A partir dos anos 30, a região, que então passaria a ser chamada de Sertão Carioca, seria vista como um potencial cinturão verde voltado para o abastecimento do então Distrito Federal.
Leonardo Soares dos Santos é historiador e professor da UFF