Num trabalho intitulado O Rio de Janeiro na era Pedro Ernesto, Carlos Sarmento procura documentar a “dinâmica relacional da esfera política” da cidade do Rio de Janeiro na década de 30. Para compor a sua análise o autor faz um importante recuo com o objetivo de perceber como alguns dos principais aspectos daquela esfera política vão se estruturando ao longo das primeiras décadas da República. Muitas das informações que se seguem foram extraídas desse trabalho.
A lei orgânica n. 85 de 20 de setembro de 1892 criava o cargo de prefeito do Distrito Federal, a ser indicado pelo presidente da Republica. O legislativo passaria a ser desempenhado pelo Conselho Municipal, composto por 27 intendentes eleitos diretamente pela população. Por muito tempo esse Conselho seria o espaço de atuação de chefes políticos locais cuja força provinha de suas redes de clientela política. Estas seriam divididas por diferentes regiões, fruto de numa espécie de “loteamento político” da cidade. Tendo o controle de uma região, o chefe político realizava o cadastramento eleitoral, distribuía as cédulas e procurava manter um certo relacionamento com os demais chefes políticos a fim de constituir grupos mais coesos de atuação.
No Sertão Carioca, os que mais se destacavam nesse mister eram Caldeira Alvarenga e, principalmente, Júlio Cesário de Melo. Este era segundo Sarmento, um “renomado médico de origem pernambucana, com atuação em Campo Grande, onde construíra em 1915 uma clínica”; controlava também os matadouros de Santa Cruz e Campo Grande, tendo por isso primazia na indicação dos nomes para os diversos cargos dentro dos abatedouros. O controle do abastecimento de carnes verdes da cidade, permitia-lhe acionar uma série de mecanismos baseados no assistencialismo e no empreguismo, de modo que isso lhe possibilitaria controlar também 80% do eleitorado de uma região que abarcava Campo Grande, Santa Cruz e Guaratiba. Tal fenômeno fez com que Cesário fosse chamado também de “Rei do Triângulo”.
Curiosamente, obtivemos importantes informações sobre as práticas político-eleitorais realizadas em vida por Cesário quando de sua morte em 1953. O mais interessante é que todas aquelas práticas são apresentadas por um prisma inegavelmente positivo. No obituário escrito pelo jornal local Folha Democrática intitulado “Morreu Julio Cesário de Melo. Último Apóstolo do Sertão Carioca” encontramos um bom número de razões para que em respeito à memória de “uma vida que se extinguiu santificada pelo amor e pela humildade” se tenham vestido “de luto as almas e as estradas de Santa Cruz”, assim como de “tôda região conhecida como Triângulo Carioca”. Uma primeira prova de que Cesário era “benquisto e popular” era o fato de ter batido um “recorde curioso”: teria possuído 336 “afilhados”. Teria sido isso fruto do controle que Cesário tinha sobre abatedouros e matadouros? Não, segundo o jornal: “Sendo pobre, reconhecidamente pobre, talvez por isso mesmo era amado de todos”. O jornal confirmava todas as práticas clientelísticas de Cesário, só que elas se dariam em função de uma concepção da política como “sacerdócio”. Ao trabalhar para atender os interesses de outras pessoas, Cesário não o fazia com o intuito de receber algo em troca, já que “nascera com a vocação da bondade e do desinterêsse”. Vejamos então o que o jornal dizia sobre a forma de fazer política do “velho Pagé” – como também era chamado pelo jornal, com o intuito de aludir a sua dupla condição de “sacerdote” e médico. Aliás, as pessoas que eram objeto de sua política não constituíam um mero conjunto de eleitores, mas uma autêntica “família”. Vejamos o porquê:
[sua política] era feita na base da estima pessoal, uma espécie de conversa em família, serena e amável. Êle cuidava de tudo, na vida dos seus eleitores; ia recebe-los no limiar da existência e conservava-os ligados ao seu afeto, pelos tempos afóra, resolvendo-lhes, paciente e paternalmente, os problemas mais íntimos, conquistando-lhes a solidariedade política através [de] uma série de favores pessoais. Cruzava diariamente, para servi-los, as ruas empoeiradas dos bairros longínquos, com a maleta dos ferros e dos remédios amarrada à garapa do burro.
Seria por meio de Cesário que as demandas e reivindicações dos moradores da região chegariam até os centros de poder da capital. Era com a intenção de trabalhar em prol do “bem alheio”, que Cesário “rondava as ante-salas dos Ministérios, pedindo empregos, reclamando o cumprimento de promessas, mendigando melhorias de transporte, desenvolvendo uma atividade fantástica.”
Outra manifestação das atividades políticas de Cesário era a organização das famosas “peixadas cívicas” de Sepetiba. Nesses “banquetes solenes e requintados”, segundo Sinvaldo Souza, “eram escolhidos os nomes mais apropriados para disputarem as eleições majoritárias e indicados os apaniguados que ocupariam as funções”. Sinvaldo Souza também nos conta que até o presidente da República Washington Luís participava desses encontros patrocinados por Cesário, o que se devia fundamentalmente ao clima de “amizade e de fidelidade partidária” cultivada pelos dois. Tal ligação
seria responsável mais tarde, por um certo ostracismo vivido pelo então senador durante o período em que o Brasil foi governado por Getúlio Vargas. Na verdade, segundo dizem os mais antigos, Vargas nunca ‘engoliu’ o ‘senador nazareno’. E sempre que vinha à Santa Cruz procurava deixar evidente que não se dispunha a prestigiar o velho político.
A descrição sobre a personalidade de Caldeira Alvarenga é em certo sentido idêntica a de Cesário. Outra coincidência: tal descrição também aparece no seu obituário, quase um ano depois da morte de Cesário. Como prova da popularidade de Caldeira, o Folha Democrática noticiava que ele também era chamado de “Caldeirinha” e por “milhares, simplesmente Yoyô”. Além de “simples, tolerante, manso de coração, de olhar sereno e os lábios recortados”, o jornal lembrava que Caldeira foi “amigo inseparável de Pedro Ernesto na memorável campanha autonomista de 1933” e um dos membros do Conselho do Movimento Libertador da Terra Carioca.
Este também era um ponto em comum entre os dois chefes políticos: eles encampariam a bandeira em favor da autonomia do Distrito Federal oficialmente ao se filiarem ao Partido Autonomista, o qual era liderado por Pedro Ernesto. Caldeira entraria em 1932 e Cesário em 1934. Mas havia também uma importante diferença entre o “Rei do Triângulo” e “Caldeirinha”: se o primeiro construiu sua base eleitoral junto a segmentos ligados aos setores de comércio e de serviços da região, o segundo arregimentaria votos entre os “pequenos agricultores”.
Não foi nosso propósito pesquisar mais a fundo a atuação dessas desses dois personagens, e do legislativo carioca de um modo geral, numa época anterior ao período delimitado como objeto de estudo (1945-64). Mas é possível que tenha sido Caldeira Alvarenga aquele que mais investiu em ser reconhecido como o “maior” ou “mais legítimo” defensor dos interesses da pequena lavoura e dos lavradores cariocas. Mas - insistimos em frisar - isso é apenas uma hipótese, que só uma pesquisa mais detalhada e documentada sobre esse período poderá comprovar.
Mas era o controle exercido por esses chefes políticos tão incontestável assim? Não havia nenhum tipo de concorrente no próprio legislativo a lhe fazer frente? Sarmento nos conta que desde 1926, a fragmentação da estrutura social em diversos setores daria origem a várias formas associativas. O surgimento dessas associações e a pressão crescente dos setores economicamente inferiores implicaram em importantes modificações nas formas de arregimentação eleitoral e na própria redefinição do modo de “fazer política” no interior do Distrito Federal. A primeira delas, seria a realização do alistamento eleitoral em sedes de associações classistas, que resultou inclusive no crescimento dos candidatos eleitos com apoio das uniões de trabalhadores. Porém, observa o autor, seria com a Lei Eleitoral de 1932 que o monopólio da política patronal da Primeira República, baseado nas redes de clientela, seria efetivamente desestabilizado. Com ele o voto passaria a ser permitido às mulheres e a idade de cadastramento eleitoral seria reduzida para 18 anos. Estabelecia-se também o voto secreto e era oficialmente sancionada a permissão para que as associações classistas e órgãos públicos promovessem o alistamento eleitoral. Como essas transformações afetaram o controle exercido por Caldeira Alvarenga e Cesário de Melo no Sertão Carioca nas décadas de 20 e 40 é um assunto que foge aos objetivos do presente trabalho, mas é possível que ele não fosse tão tranqüilo assim.
O que supomos ser possível nas décadas de 20 e 30 era efetivamente uma realidade a partir de 1945: com a “redemocratização” após o fim do Estado Novo, o legislativo seria reaberto após um longo recesso de quase 10 anos imposto pelo Governo Vargas. O nome da Casa do legislativo passaria a ser Câmara Municipal, o nome de seus ocupantes também mudaria: o nome Intendente seria substituído pelo de Vereador. As primeiras eleições ocorreriam em janeiro de 1947. Cesário de Melo e Caldeira Alvarenga seriam eleitos, o primeiro pelo Partido Republicano (PR) e o segundo pela Aliança Trabalhista democrática (ATD), uma coligação criada especificamente para a disputa das eleições de 1947 e que reunia o Partido Democrático Cristão (PDC), o Partido Social Democrático (PSD) e o Partido Proletário do Brasil (PPB). Mas as eleições revelavam sinais nítidos de que algumas coisas tinham mudado. Novos nomes, grupos e agrupamentos iriam começar a discutir e avaliar assuntos que antes pareciam ser apenas da alçada dos chefes políticos que em outros tempos controlavam o voto dos eleitores do Sertão Carioca. E mais do que isso, alguns não se contentariam em apenas discutir como também passariam a concorrer pelos preciosos votos de uma das regiões da cidade que mais cresciam em termos populacionais. Mas para que essas mudanças pudessem ocorrer nas tribunas do Salão da Câmara, alguns fatos tiveram que acontecer no Sertão Carioca. Num processo semelhante ao ocorrido na década de 30, os novos concorrentes viabilizariam formas de se defrontar com o monopólio político-eleitoral dos antigos chefes políticos, promovendo intensa concorrência no âmbito do sistema de arregimentação de eleitores.
Num período que abarca a segunda metade da década de 40, esses novos concorrentes estariam principalmente agrupados em três partidos: o Partido Comunista do Brasil (PCB), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e a União Democrática Nacional(UDN).
Com o retorno à legalidade em 1945, o PCB passou a adotar, como nunca em toda sua história, uma ambiciosa estratégia eleitoral com vista a eleição do maior número possível de candidatos do partido aos cargos das diversas esferas do poder legislativo. Para alguns autores, pela primeira vez o PCB se tornava um partido de massas. No caso do Distrito Federal, a campanha eleitoral tinha como ponto de apoio os Comitês Democráticos Progressistas (CDPs), que eram as organizações de bairro do partido. Os CDPs tinham como tarefa: a) organizar um plano de reivindicações locais realizáveis; b) coletar dinheiro; e, c) realizar toda propaganda a seu alcance. A direção do PCB determinava que nas assembléias dos CDPs fossem discutidos temas como
- reivindicações políticas gerais.
- reivindicações práticas e imediatas.
- criação de cursos de alfabetização e cultura geral.
- mobilização de mulheres para integrá-las na vida política da nação.
- Organização de bibliotecas, conferências e palestras.
No caso do CDP de Jacarepaguá, criado em junho de 1945, haveria também a promoção de reuniões e assembléias dedicadas exclusivamente aos lavradores do bairro. Dessas discussões surgiam como principais reivindicações: medidas de proteção ao lavrador contra os “grileiros”, melhorias de infra-estrutura, serviços públicos (luz, água, postos médicos), assistência técnica e criação de cooperativas,a exigência por parte da Prefeitura de títulos de propriedade de quem se intitulava proprietário de terras da Baixada de Jacarepaguá e a entrega das terras saneadas pelo DNOS “ás pessoas que as” desejassem “lavrar”.
Junto ao levantamento de todas essas reivindicações, principalmente as mais “imediatas”, e à promoção de todos as iniciativas para integrar os moradores da região à vida política da “nação” havia uma tarefa lhes dava sentido e direção: a prática do alistamento eleitoral. Algo caro numa época em que o poder dos chefes políticos tradicionais dependia de seu monopólio. No discurso de inauguração do CDP de Jacarepaguá, o seu primeiro presidente, Pedro Coutinho Filho ao discutir o tipo e o significado do alistamento eleitoral realizado pelos CDPs fazia questão de opô-los às práticas dos antigos chefes políticos ao comentar aquelas “organizavam o povo debaixo para cima e não de cima para baixo como era de costume antes”. E o próprio voto passava a ter um novo significado: ele tinha que deixar de ser visto como uma moeda de troca e passar a ser entendido como a “a arma do Povo”. Era com este propósito que o CDP de Jacarepaguá por exemplo, promovia a criação de postos eleitorais destinados “a armar todo e qualquer cidadão com um título eleitoral”.
Outro ponto merecedor de destaque é que era o Comitê Metropolitano quem determinava onde os candidatos deveriam atuar; eles eram “distribuídos” conforme a “planificação” traçada por aquele Comitê. Quanto a alguns bairros pertencentes ao Sertão Carioca ficou estabelecido que Odila Schimidt ficaria com Jacarepaguá, Otávio Brandão com Campo Grande e Sidney Pereira de Resende com Campo Grande, Santa Cruz e Sepetiba.
Coincidentemente foi no Distrito Federal que essa estratégia eleitoral dos comunistas teve maior êxito: nas eleições de 1947, o PCB simplesmente elegeu a maior bancada da câmara – 18 vereadores. Dos candidatos com atuação no Sertão Carioca citados acima, só Sidney Pereira não conseguiria se eleger. Decidida a eleição o Comitê Metropolitano procedeu a nova “planificação”: Jacarepaguá ficava com Antônio Soares de Oliveira; Campo Grande e Bangu com Arlindo Pinho e Realengo com Iguatemi Ramos. De modo a efetivar “um vasto trabalho de massa, ligado aos respectivos organismos locais do partido”, cada vereador deveria promover “reuniões e assembléias de moradores e pequenos comerciantes, etc., onde os vereadores deverão ser apresentados ao povo, cada qual como representante local e de setor profissional”. Do mesmo modo que os CDPs e outras organizações trabalhavam pelo fortalecimento político-eleitoral do partido, a direção deste entendia que o inverso também deveria ocorrer, ou seja, o sucesso eleitoral deveria implicar no fortalecimento das suas organizações de base. O Comitê Metropolitano insistia que em todos os debates organizados naquelas ocasiões, tanto os vereadores como os militantes do Partido, deveriam
explicar pacientemente ao povo, a fim de combater falsas ilusões reformistas, que nem tosos os problemas poderão ser resolvidos pela Câmara municipal e que em todos os casos, para que a ação dos vereadores possa ser eficiente, precisa ser apoiada pelo povo organizado(...)
A atuação político-eleitoral do PTB no Sertão Carioca, assim como nas outras regiões do Distrito Federal, deu-se por meio dos diretórios de bairro, também chamados de “diretórios paroquiais”. Segundo Maria d’Araújo os membros desses organismos de base eram “escolhidos” de acordo com sua lealdade aos dirigentes do partido. Sendo que o principal deles nessa época era Segadas Viana, chefe do Diretório Nacional e da Secretaria Política e que, coincidentemente, era também o chefe do Diretório Regional do Distrito Federal.
Para quebrar o monopólio dos antigos chefes locais, aqueles organismos, ao que parece, utilizaram-se das mesmas práticas clientelísticas daqueles. Isso ficava claro num dos vários informes detalhados redigidos por Segadas Viana a Vargas. Nele o chefe do Diretório Regional do DF revelava o tipo de vínculo que procurava manter com o eleitorado carioca:
Entendendo que o PTB deve prestar serviços permanentes aos trabalhadores, organizei um serviço de assistência social que está em pleno funcionamento (...). Nosso trabalho de propaganda não cessa. Todas as semanas levo meu aparelhamento de cinema para os subúrbios e morros.
Para a prestação desses “serviços” o partido contava com 18 médicos e 6 assistentes sociais. Há que se destacar que junto com a criação dos diretórios de bairro, o partido também montava postos eleitorais em épocas próximas das eleições. No caso específico do Sertão Carioca, o petebista que mais se destacou nesse tipo de atuação foi João Luiz de Carvalho, que, curiosamente, também era nessa época o presidente do SERDF.
A informações que temos a respeito da UDN são bem menores, mas elas indicam que estratégia do partido seria muito semelhante a do PCB e PTB. Assim como os dois, a UDN também promoveria a criação de diretório regionais. O único diretório sobre o qual pudemos obter informações, o de Jacarepaguá, verifica-se que ele teria como uma de suas funções promover assembléias entre os lavradores e incentivar a formação de cooperativas. É interessante notar que tal função aproximava-se muito mais com aquela exercida pelos CDPs comunistas do que com os diretórios de bairro petebistas. Por outro lado o homem do partido a ter atuação mais destacada naquela região, Breno da Silveira, tinha ligações com antigos chefes políticos como Caldeira Alvarenga.
Leonardo Soares é professor de História e pesquisador do IHBAJA